O século XXI vem sendo marcado por um seríssimo problema de saúde pública, relacionado ao uso dos antibióticos e o desenvolvimento dos mecanismos de resistência bacteriana. Caso fosse um jogo de xadrez, poderíamos dizer que as bactérias sempre estão uma ou duas jogadas à frente, e sua chance de nos dar um xeque-mate é bem maior do que a recíproca.
Mas afinal, o que nos leva a pensar desta forma? São mesmo as bactérias esses terríveis inimigos que a imprensa insiste em nos mostrar a cada reportagem? Quais as causas possíveis que levam as bactérias a desenvolverem tais mecanismos? É mesmo o fim da era dos antibióticos?
São tantas as perguntas que nos fazem no dia a dia, nas rodas de amigos, no laboratório ou nos hospitais, e o que podemos dizer à sociedade é que sim, estamos passando por uma crise como poucas vezes vista, sendo a primeira em que analisamos a luta pela vida em contrapartida de constantes ataques.
São setenta e seis anos desde que iniciamos a era do antibiótico com a comercialização e uso da penicilina, descoberta em 1928 por Alexander Fleming, um microbiologista inglês. Nestes anos, nunca mudamos o modo de agir diante dos fatos, ou seja, infecção se trata com antibiótico, e quanto mais espectro de ação, melhor. O uso indiscriminado, na medicina humana e veterinária, somado ao uso na indústria de alimentos, nos trouxe até aqui. Hoje em dia podemos afirmar que há bactérias absolutamente resistentes a todo o arsenal de fármacos antibacterianos disponibilizado pela indústria, e isso é mesmo assustador. Mas, as bactérias não são inimigos. Pelo contrário, são grandes aliadas da vida humana. Sem elas, por exemplo, como “fabricaríamos” a vitamina K? Como manteríamos um de nossos principais mecanismos de defesa, que é a nossa microbiota? Portanto, não há a menor chance de bactérias serem vistas como causadoras do caos. Este foi causado pelos homens e suas canetas.
Assim que a penicilina foi usada experimentalmente durante os anos 30, Ernest Chain, um Bioquímico alemão que fazia parte do “Harvard Team”, relatou a produção das penicilinases por cepas de Staphylococcus aureus que estudava. Tentou alertar as autoridades, mas a expectativa era maior que medo do fracasso, que realmente não veio tão fácil. Foram necessários alguns anos para que a resistência bacteriana começasse a chamar a atenção. Em 1961, apenas um ano após o lançamento da meticilina, Jevons relata resistência sem presença de beta-lactamases, e bem mais tarde descobrimos ser a causa, a modificação da PBP2 e perda de afinidade química dos fármacos e seu receptor. Portanto, podemos afirmar que a resistência é tão antiga quanto a terapêutica antibacteriana.
São muitas as causas, mas sem sombra de dúvidas, a luta pela sobrevivência é a maior das que as levam a desenvolver – ou até mesmo utilizar – tais mecanismos. São diversos também os mecanismos de resistência. Enzimas que atacam os fármacos, modificação de receptor, permeabilidade de membrana, redução de porinas, espessura de parede celular são os mais comuns.
Se faz necessária uma reflexão profunda e mudanças de comportamento humano, que passa por médicos, farmacêuticos, analistas clínicos, enfermeiros, fisioterapeutas e outros profissionais do campo da saúde e que mantém contato físico com pacientes internados em instituições hospitalares, pois é lá que o problema grave está instalado.
O formato terapêutico é arcaico, e deve sofrer mudanças drásticas no que se refere à escolha, prescrição, dispensação farmacêutica e uso dos antibióticos dentro e fora dos hospitais. Essas mudanças deverão ser no campo diagnóstico, com investimento tecnológico e educacional aos profissionais que atuam em laboratórios de microbiologia clínica, para que resultados cada vez mais completos e rápidos cheguem às mãos dos médicos assistentes (MALDI-TOFF é um exemplo). Estes, por sua vez, deverão passar por capacitações em farmacologia de antibióticos e compreensão de resultados de exames laboratoriais, para associar essas informações ao quadro do paciente em questão, o que trará uma melhor comunicação clínico-laboratorial-farmacêutica e tratamento adequado – e caso a caso – já que os dados laboratoriais permitem adequações individualizadas de doses conforme a MIC e o fármaco a ser utilizado.
Somado a essas mudanças de modelo, deveremos trabalhar com ênfase na educação continuada profissionalizante, combatendo a falta de respeito com regras de controle de infecção, o descompromisso de profissionais com o conhecimento técnico, a incapacidade da alta cúpula dos hospitais em tomar providências rigorosas quanto ao uso dos antibióticos, a desinformação social que permite a prática da automedicação e da interrupção do tratamento antes do momento correto, e outra série de fatos que acabam direta ou indiretamente influenciando no problema macro, que é o impacto da resistência bacteriana na saúde da sociedade.
Mudança de modelo, ou mudança de paradigma, é a meta a ser alcançada.
REFERÊNCIAS:
1. Fleming, A. - On the antibacterial action of cultures of a Penicillium, with special reference to their use in the isolation of B. injluenzae - British Journal of Experimental Pathology, Vol. 10, pages 22 fS 236.
2. Selman, A., et al. - The soil as a source of microorganisms antagonistic to disease-producing bacteria - Journal of Bacteriology - 1940, 40(4):581.
3. Bauer, A.W., Kirby, M., Sherris, J. C., Turck, M. - Antibiotic susceptibility testing by a standardized single disk method - American Journal of Clinical Pathology - 1966-45:493-4
4. Courvalin, P., LeClercq, R., Rice, L. B. - Antibiogram - ASM Press - 1999
5. Versalovic, J. et al - Manual of Clinical Microbiology - ASM Press - 2011
6. Ostermann, F. - A epistemologia de Kuhn Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 13, n. 3 (1996) 184-196 - Florianópolis, SC,
7. Kuhn, T. S. - A estrutura das revoluções científicas ; tradução Beatriz Vianna Doeira e Nelson Boeira. - 9. ed. - São Paulo: Perspectiva, 2006.
8. The Kuhn Cycle http://www.thwink.org/sustain/glossary/KuhnCycle.htm
9. Jevons, M. P. - “Celbenin” - resistant Staphylococci - Britanic Medicine Journal - 1961: (5219): 124–125.
Muito bom